segunda-feira, 12 de setembro de 2005

O Dragão

Aquele jovem nunca havia feito mal a ninguém, pelo menos não por vontade própria ou nada do qual não tenha se arrependido depois. Sempre fora admirado por diversas pessoas pelas suas características. Estava longe de ser alguém perfeito mas tinha menos defeitos do que ele mesmo pensava. Algumas pessoas o apedrejavam por ele ser como era mas nenhuma o punia como ele punia a si mesmo. Não era dado a autoflagelações mas sofria por ser como era, algo que imaginava ser perto de uma aberração. No entanto nem todos o viam assim, muitos gostavam dele e ninguém tinha motivo para odiá-lo mas agora ele ia morrer.


Seria uma execução pública, algo comum para o povo mas que sempre despertava a atenção de todos. O ser humano sempre foi atraído pela desgraça. Ver a execução pública daquele rapaz no fundo atraía até aos que diziam gostar dele. Muitos conhecidos sequer sabiam de sua morte iminente e talvez ela nem viesse a fazer diferença, certamente poucos chorariam sua morte. Na verdade, boa parte das pessoas que estavam presentes não sabiam da sua execução, não sabiam o que ia acontecer ou nem sabiam de quem era o condenado. O mais estranho era que, mais uma vez, o jovem não se preocupava com si mesmo, com a sua vida ou a sua morte e sim com a vida e a morte dos que estavam em volta dele. Ele sabia que dentro dele havia algo pior que ele aprisionara por toda a sua vida mas que com sua morte não poderia mais ser detido.


Seu último ato em vida foi olhar para o seu executor e perguntar-lhe se ele tinha certeza de que ia mesmo fazer aquilo. O carrasco poderia tomar essa decisão de última hora e nada aconteceria com ele ou com o condenado, era a lei. Ambos seguiriam para sua casa até que no futuro algum outro carrasco acabasse sendo designado para a execução porque ela dificilmente seria revogada, a lei era assim. E mesmo que não fosse exatamente obrigado, mesmo que não viesse a ser punido por não cumprir sua missão, o carrasco não refugou. Havia uma lei mais forte que o impelia à sua tarefa, sua lei, sua naturez, a lei da natureza. Desde o princípio cada um tem seu destino a seguir e o destino do jovem era aquele que somente fora adiado por outros carrascos talvez por terem tido menos público, talvez por terem se rendido ao seu olhar. Um olhar que não trazia pena de si mesmo mas pena dos outros, dos que iriam sofrer por sua morte. Ou por terem visto no fundo dos olhos do jovem o que se escondia por trás de sua morte.


A hora soou e em poucos segundos o corpo do jovem já jazia aos pés de seu executor. Não houve aplausos, não houve vaias, choro ou risadas, somente o silêncio observava a cena. Era apenas mais um corpo. Um corpo menos inerte do que deveria ser pois parecia ainda respirar com o volume aumentando e diminuindo ritmadamente mas parecendo aumentar cada vez mais. No início imperceptível mas depois claramente o corpo crescia e parecia prestes a rasgar as roupas e a pele do jovem pois não era o corpo que aumentava e sim algo dentro dele.


A visão horrorizou a todos e o silêncio não era mais o único a observar a cena. Havia gritos de espanto em cada rosto ao contemplar a criatura surgindo por dentro do corpo sem vida. Um monstro que só parecia haver em lendas, fantasias, imaginação, talvez nas mentes mais loucas, nas histórias mais doentias ou criativas. O corpo não passava de uma mancha vermelha no chão quando a criatura pareceu se levantar por completo. Os olhos do carrasco traziam o medo que qualquer um esperaria do jovem antes da execução mas a fera não tomou conhecimento de seu terror ou de sua existência antes de transformá-lo na segunda mancha de sangue do local. Em pouco tempo dezenas em sua volta foram mortos por um suspiro, conforme se movia a fera destruía vários outros além dos que perseguia e matava.


Logo muitos vieram para deter o dragão mas a cada tentativa de uma nova execução a criatura se tornava mais forte e sentia mais prazer em destruir e matar. A simples visão de horror nos olhos de suas vítima parecia ser a satisfação de vê-la morta sob suas garras. Nada importava, não havia mais escrúpulos, pena ou dor por ver os outros se sentir mal. A criatura há muito aprisionada estava solta e exercia seu prazer em destruir os mais diversos tipos de vida e de obras do homem ou da natureza. Era o oposto do jovem, o prazer no sofrimento.


O mundo logo tremeu sob a caminhada do dragão, vários sucumbiram sob sua ira. Nem aqueles que ele amava ou aqueles que diziam amá-lo foram perdoados, apenas os que conseguiram escapar sobreviveram. Nada pôde pará-lo, nenhuma arma foi capaz de ferí-lo. Por anos ele caminhou sua destruição até resolver descansar. Retirou-se para onde ninguém iria mais vê-lo ou onde ele não veria mais ninguém. A visão de outras pessoas o incomodava, dava nojo. O melhor era apenas sumir para sempre.


Por anos ninguém mais teve notícias da fera e com o fim daqueles que presenciaram seu horror a história voltou a ser uma lenda. Poucos acreditam no que houve, ninguém soube o que aprender com aquilo, se é que havia algo a aprender. Poucas vezes se aprende algo com a morte de um ou de milhares. Muitos dos que acreditam na história do jovem crêem que hoje o dragão já está morto. Outros acreditam que por vezes o jovem volta para ver como está o mundo na forma do jovem mas ninguém sabe se com a fera aprisionada.

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